Cubatão, 16 de Maio de 2024 - 00:00:00

Cadernos e caderninhos

22/02/2022
Cadernos e caderninhos

(*) Marcio Aurélio Soares

 

Tenho guardados até hoje os cadernos de estudos do meu avô e de meu pai. Não sei qual deles tinha a caligrafia mais bonita. Verdadeiros desenhos. Lembranças de família que foram ficando na gaveta e na memória. Quanto aos meus cadernos, posso lhes adiantar que até pensei em guardar um que estivesse em bom estado de conservação. Não deu certo. O melhor tinha umas cinquenta “orelhas”, aquelas dobras no alto das folhas. Lembro que fazia de tudo para não deixar os cadernos com orelhas e sem rabiscos. Não conseguia. Tentei até trocar para um de capa dura, preta, tipo de contador. Quando menos esperava, estava lá a primeira orelha. Caderno orelhudo não dá para ficar de lembrança, só na lembrança. Basta carregar o nome Aurelio! E a letra? Aff…minha professora, Dona Marli, me deu vários cadernos de caligrafia.

 

Confesso que me esforçava, mas o resultado nunca chegou. Depois, fiquei sabendo, que, logo depois de minha geração, a pedagogia moderna, em grande parte inspirada no construtivismo, deixou de lado os cadernos de caligrafia e passaram a prezar mais a liberdade de expressão, também aplicada à escrita na sua forma. Se eu soubesse disso antes, só faltaria ter nascido no Egito antigo, porque os hieróglifos já estariam garantidos. Nunca deixei de entender e conseguir ler as minhas anotações. Só poucas vezes. Na verdade, algumas ou várias vezes, para ser sincero. Por incrível que pareça, conheci um tipo pior que eu. O indivíduo escrevia, e, passado um tempo, não conseguia mais ler o que tinha escrito. Talvez seja esse um bom exercício para a memória.

 

A melhor lembrança que tenho é do menor caderno que tive. Esse caderninho ajudou muita gente. Em especial a mim.

 

Na minha geração, ainda usávamos toda a roupa branca, incluindo sapatos e meias, ao invés dos jalecos de manga cumprida, tão comuns atualmente. O caderninho ficava perfeitamente acomodado no bolso de trás da calça, e continha informações preciosas. Éramos acadêmicos internos, ou médicos residentes, ainda não muito afeitos com todos os nomes comerciais dos remédios. Era impossível decora-los em tão poucos anos. E, invariavelmente, atendia um paciente que me trazia um medicamento, cujo nome fantasia, desconhecia. Não era tempo de genéricos. As farmácias eram lotadas de caixas coloridas com os mais diversos nomes, cada um mais estapafúrdio que o outro. Imagina confundir Alopurinol com Haloperidol? O doente com “gota” ia ficar doido da cabeça! A solução estava no caderninho, que não era consultado na frente da paciente, naturalmente.

 


– Doutor, eu estou tomando esse remédio aqui (colocando em cima da mesa a caixa do remédio que estava em seu bolso).

 

Tentava fazer um ar de cientista, extrair alguma dica sobre o seu nome genérico, e, muitas vezes, nada. Bolso por bolso, também tenho o meu com caderninho, pensava, querendo coçar a cabeça. Mas não podia consultá-lo na frente dos pacientes. Óbvio que não. Seria um desastre para a minha reputação ainda em construção!

 

– Só um momento. Vou verificar se tenho amostras grátis para a senhora.

 

Corria para a sala ao lado, e, trêmulo, tirava meu “salvador” do bolso.

 

Melhor ainda quando voltava para o consultório com as mãos cheias de amostras e o orgulho explodindo no peito.

 

Taí, esse caderninho, mesmo orelhudo, deveria ter sido guardado de lembrança.

 

(*) Marcio Aurélio é médico sanitarista

 

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